Por Hellen
Reis Mourão
Era uma vez um menino que, em seu
aniversário, ganhou uma caixa com 25 soldadinhos e os alinhou
em cima de uma mesa. O último soldadinho de chumbo tinha apenas uma
perna.
Perto, havia uma bailarina de papel e ela se equilibrava somente em uma
perna, com os braços levantados.
O soldado de uma perna só acredita
que a bailarina também tinha somente uma perna, e se apaixonou por
ela.
Naquela noite, um gênio mau, entre os
outros brinquedos, advertiu o soldado para que ele pare de olhar para a
bailarina, mas o soldado o ignorou.
No dia seguinte, o soldado caiu da
janela, trabalho do gênio, e ficou na calçada. Dois meninos encontraram o soldado,
colocaram-no em um barquinho de papel e lançaram-no pela sarjeta.
O barquinho cai no esgoto e continuou
a navegar até cair num rio, onde foi engolido por um peixe.
Quando este peixe foi pescado e
cortado, o soldado estava na mesma casa de antes e colocado de volta próximo à
bailarina.
Sem querer, o soldado cai no fogo. Um
vento sopra e derruba a bailarina também no fogo; ela é consumida
instantaneamente, somente restando o coração de pedra azul.
O soldado derrete numa poça em forma
de coração e prende no coração da bailarina.
A História do Conto
O Soldadinho de Chumbo é um conto
de fadas escrito por Hans Christian Andersen e publicado pela primeira
vez em 1838.
Foi o primeiro conto escrito
totalmente por Andersen. É importante notar que:
·
Um conto de
narrativa curta e fora dos padrões dos contos mais conhecidos.
·
Aqui
o herói é um soldadinho de chumbo de uma perna só, que se
apaixona platonicamente por uma bailarina, que ele julga ser igual a ele.
·
Podemos
supor que o soldadinho sem uma perna seja um aspecto da infância do
menino.
·
Ele
passa por um processo de transformação ao morrer. Ou seja, um aspecto do menino
irá passar pelo fogo das emoções e morrer para que algo novo
renasça.
A palavra fada vem do latim, fatum,
que significa fatalidade, destino, fado.
O soldadinho de chumbo cumpre seu
destino fatal, mesmo passando por adversidades e contratempos.
Um aspecto interessante nesse conto,
é que o destino nasce do desejo. Ao desejar a bailarina e se
espelhar nela ele cumpre seu destino, que nada mais é que a transformação e
a imortalização do amor.
Isso significa que o desejo é a fachada para
o cumprimento de um destino, que nada mais é que o nosso processo de
individuação.
Precedentes na Mitologia e na Psicologia
O tema do amor imortal aparece em mitos como o de Eros e Psiquê.
Onde a alma humana passa por
uma jornada de transformação, por meio do amor, e ao final, é
elevada aos céus e se torna imortal, por meio do fogo divino (Eros).
É importante também salientar um
aspecto que é bem característica da infância, a fantasia.
É comum a criança imaginar que ao
dormir os brinquedos ganham vida e brincam uns com os outros.
Por essa razão, podemos associar o soldadinho de chumbo à fantasia de infância
do menino.
No entanto, o soldadinho é o herói, e é dele que irei falar nesse
texto.
Para iniciar a análise, é importante
observar que o soldadinho é feito de chumbo.
O chumbo para a alquimia é
um metal associado a saturno, planeta associado a
realidade pesada.
Conforme Edinger (2006), o chumbo é
pesado, sombrio e incomodo. Ligado a melancolia, depressão e
limitação mortificante.
Esse aspecto marca o encontro
do ego em
formação com a realidade da vida e sua finitude.
Na alquimia o chumbo também está
associado à operação alquímica coagulatio, que consiste em
transformar as coisas em terra, ou seja, a materialização das coisas na
realidade humana.
A coagulatio é comparada
simbolicamente a encarnação.
Em termos psicológicos seria o
processo de encarnação do arquétipo, processo esse que vai mais além
do que a simples tomada de consciência (Edinger, 2006).
Mas de Qual Arquétipo Trata o Conto?
O conto não informa a idade do
menino, mas apenas que é uma criança. Podemos supor que o
soldadinho de chumbo represente a encarnação completa do ego como centro da
consciência. Na encarnação do arquétipo há a manifestação concreta na vida do
indivíduo, com toda transformação inerente a esse processo.
Essa encarnação do arquétipo pode se
realizar por meio de relações interpessoais, ou por meio de um campo e
interesse muito forte, como o estudo ou de trabalho (Edinger, 2004).
Conforme Von Franz (2005a):
“Sabe-se pelos resultados de
pesquisas na área da psicologia infantil, que nos primeiros 20 anos de vida
(tomando-se uma estimativa ampla), a principal tendência do inconsciente é
construir um complexo de Ego forte, e que a maioria das dificuldades na
juventude resultam de perturbações ocorridas nesse processo, seja pela influência
negativa dos pais, seja pela experiência traumática ou qualquer outro
distúrbio.”
No momento em que o ego humano
“encarna”, ou seja, o centro da identidade do eu se torna totalmente
consciente, é o momento que o indivíduo se percebe como um eu independente
do outro.
O que pode gerar um sentimento
de solidão e limitação enormes.
Um dos fatores da formação do ego
humano é o ideal do herói que desempenha o papel de
modelo.
Esse ideal pode ser projetado
no pai, num irmão mais velho, num professor, num policial, etc.
Von Franz (2005a) comenta:
“Nos seus sonhos secretos, a
criança imagina que é aquilo que ela quer ser quando crescer. As fantasias de
muitos garotinhos são aquelas de vestir uma capa vermelha e sinalizar os trens,
de ser o chefe, o “chefão”, o rei, ou chefe de polícia. Esses modelos são
projeções produzidas pelo inconsciente; elas aparecem naturalmente nos sonhos
dos adolescentes ou são projetadas em figuras externas que captam a fantasia da
criança e influenciam a construção do seu ego; toda mãe sabe disso.”
O fato de o brinquedo ser um
soldadinho pode informar sobre uma formação de ego projetada na imagem do herói.
O soldado é aquele que luta, é
valente, patriota e salvador. O soldado seria uma fortificação do ego do menino.
Além disso, o chumbo para a alquimia representa a prima
matéria, que deveria ser transformada em ouro.
A pesada matéria tinha que ser
purificada e transformada em algo nobre, ou seja, espiritualizada.
Para Jung o alquimista não conhece a
verdadeira natureza da matéria. Nessa exploração pelo conhecimento e
transformação da matéria, projetou o inconsciente nela.
O Simbolismo
Todas as experiências alquímicas
representavam, então, as experiências psíquicas do operador (Jung, 1978).
Simbolicamente a matéria prima somos
nós mesmos e todo o trabalho é realizado sobre algo desconhecido, que é a personalidade
humana e precisamos ser reduzidos a essa primeira matéria para
encontrar o que é verdadeiramente essencial.
A matéria (o ego humano) precisa ser
purificada para desenvolver o espírito.
O conto do soldadinho trata desse
processo de transformação da psique humana.
O chumbo como matéria primordial
passa pelo processo de purificação alquímica até chegar no estado de elevação
ideal.
Uma Só Perna…
Outro aspecto importante do
soldadinho de chumbo é o fato de ele só ter uma perna.
Conforme Hillman (2008), o
aleijamento é um aspecto presente tanto na figura do puer aeternus (criança
eterna) quanto na figura do herói. Sendo muitas vezes essa uma condição, uma
ferida, advinda dos pais.
Além disso, é muito comum o herói ser
ferido na extremidade de baixo, pois puer é incapaz de estar no mundo
com ambos os pés.
O soldadinho não tem uma perna. Isso
pode mostrar a condição o menino que não quer crescer, como no conto Peter Pan.
Ele precisa saltitar, sua consciência não
tem estabilidade e é precariamente equilibrada.
O soldado de uma perna só mostra a
hesitação e uma suscetibilidade de uma consciência identificada com o puer.
Ele é limitado, frustrado e
impedido. Nesse caso só há uma maneira para a transformação, que é a morte.
Von Franz (2005b) aponta que o puer representa
o homem que não se separou da mãe.
Um dos caminhos para o
desenvolvimento dessa consciência que ainda busca o seio materno é o trabalho,
ou pela anima:
·
É
necessário para uma consciência puer assumir um
compromisso com algo ou alguém.
·
No conto o soldadinho se apaixona pela
bailarina de papel.
Características e Paixões
O fato de ser de papel já alude a
algo que é frágil e leve, oposto ao chumbo. Ela está em posição de pirueta,
dando a impressão de não ter uma perna também.
Ele se apaixona por algo que é oposto a
ele, e ao mesmo tempo imagina que possui a mesma deficiência que
ele.
Mas se trata de uma ilusão, pois
ela tem justamente o equilíbrio que ele não tem. Ela simboliza a graciosidade,
o equilíbrio e a dinâmica do inconsciente.
Ela consegue transitar de um lado
para outro, sem perder o equilíbrio. É uma mente que saltita em harmonia de
um lado a outro, de um oposto a outro.
A bailarina é a representação da alma
que é sutil e leve como papel e que está em equilíbrio. Ela representa a busca
da matéria pela transcendência. É o elemento ar, a sublimação,
a relativização, o mundo da fantasia.
Após se apaixonar pela bailarina, um
gênio do mal o derruba da janela. O gênio pode ser considerado como um
aspecto sombrio do soldadinho de chumbo.
A Sombra Neste Conto
No entanto, é importante compreender
bem esse elemento sombrio, pois ele é o catalisador de toda a aventura.
É extremante comum nos contos de fadas o elemento do mal
ser o agente que desencadeia a ação.
O encontro com uma figura malévola é
característica da jornada do herói. Onde ele vai ter que
encarar suas sombras e aspectos negligenciados.
O soldadinho vai parar no ventre de
um peixe. Tema esse muito característico da jornada do herói.
Conforme Campbell (1997) essa é uma
passagem para o renascimento do herói, e é simbolizada na imagem
mundial do útero, ou ventre da baleia.
O herói, em lugar de
conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a
impressão de que morreu.
O interior do peixe seria esse ventre
da baleia, onde o herói enfrenta a noite escura da alma. O
momento em que o herói vai para dentro para nascer de novo.
O soldadinho volta ao mesmo local de
origem, denotando o processo de morte e renascimento simbólicos. Ele renasce
para uma nova oportunidade, uma nova consciência.
A Alquimia no Conto
O soldadinho e a bailarina caem no
fogo. Ela é consumida instantaneamente, e transformada em
coração de pedra azul. Ele derrete numa poça em forma de coração e prende no
coração da bailarina.
A morte de ambos não é uma tragédia,
mas uma transformação.
O fogo tem uma representação
simbólica importante. Para a alquimia, a calcinatio é uma operação
onde um sólido é aquecido para que se liberte de suas impurezas. É
um processo de secagem da matéria.
O fogo também simboliza o espírito (assim
como a água representa a matéria). Ou seja, a matéria é transformada pela
espiritualização. Ela é seca pelo fogo, representando a purificação da matéria.
Em termos psicológicos, a calcinatio se
inicia pela frustração do ego. Os desejos frustrados intensificam as emoções,
queimando as exigências infantis do ego.
Dessa forma o ego consegue se
conectar a um novo centro de sua personalidade, mais profundo
Esse processo de transformação se
iniciou pelo amor do soldadinho pela bailarina e culmina na união dos
dois.
Eros, o deus do amor, também é
associado ao fogo da espiritualização.
Conclusão
O sofrimento que o amor causa e o
tormento de um desejo frustrado podem levar a psique humana a um estágio mais
alto de desenvolvimento.
No fim do conto, os dois se unem em
forma de coração, símbolo da eternidade. O coração significa que o chumbo da
matéria se transformou na pedra filosofal.
Símbolo do amor mais elevado,
da coniunctio superior, onde os
opostos se unem por meio do amor.
Amor pelas nossas partes mais frágeis
e renegadas, nossa parte inferior, amor pelo que é inferior no outro também,
formando assim uma totalidade.
Referências
Bibliográficas:
CAMPBELL, J. O herói de mil
faces. São Paulo, Cultrix, 1997.
EDINGER, E. F. Anatomia da
psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo,
Cultrix: 2006.
_____________ Ciência da alma.
São Paulo, Paulus: 2004.
JUNG, C. Psicologia e
religião. Petrópolis: Vozes, 1978.
KAWAI, H. A Psique Japonesa –
Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.
VON FRANZ, M. L. A
interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005a.
______________ Puer Aeternus
– A luta do adulto contra o paraíso da infancia. 5 ed. Paulus. São
Paulo: 2005b.
Texto retirado de https://www.jungnapratica.com.br/soldadinho-de-chumbo/
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