Texto de Marcella Helena
Como
são os ritos nos dias atuais?
Ultimamente tem me chamado à
atenção a falta de um marco para as inúmeras transições que todos nós
fazemos durante a vida. Antigamente, esses momentos de transição eram
marcados pelos ritos (rituais); hoje, esses momentos ou não estão sendo
vivenciados ou não estão tendo relevância na vida das pessoas.
Um número considerável de
clientes tem ido até o consultório reclamar sobre uma falta de sentido e se
queixam de se sentirem desencaixados no momento em que estão vivendo. Dando
alguns exemplos, é como se, mesmo estando na idade adulta, a pessoa ainda
esteja presa aos moldes de quando estava amadurecendo.
Ou então um jovem adulto que
não se sente pronto para ir para a vida pois de fato não se reconhece nesta
fase: ainda se sente como adolescente, vivendo dia após dia, sem muitos planos
e nada de segurança.
O
rito ao longo dos tempos
Antigamente, as pessoas
contavam com a ajuda de ritos para simbolizarem uma mudança de fase; cada tribo
ou família tinha seus meios próprios de iniciarem seus filhos conforme a vida
ia se apresentando. Esses ritos eram feitos em todos os momentos de
vida em que uma transição psíquica tinha de ser realizada, como nos marcos mais
tradicionais: iniciação à puberdade, casamento, nascimentos e mortes. Com
o tempo, os ritos foram atualizados e explorados culturalmente: a menina que
fazia 15 anos tinha uma festa para ser apresentada à sociedade; o primeiro emprego
era a porta necessária para entrar em uma vida adulta, etc., entre tantos
outros exemplos que podemos dar.
Os
ritos nos dias atuais e a relação do indivíduo com as etapas da vida
Infelizmente, nas sociedades
atuais, os ritos foram sendo deixados de lado em troca de simples
comemorações-espetáculo ou então caíram completamente no esquecimento. Os
momentos de transição continuam acontecendo nas nossas vidas, mas não se tem
dado a devida importância e atenção à essas fases; principalmente os jovens – e
claro, muitos adultos – , não estão conseguindo simbolizar essas etapas
conquistadas, ou seja, estão perdendo o sentido de cada acontecimento.
O livro “Sob a sombra de
saturno – a ferida e a cura dos homens”, do Jamis Hollis trata sobre o assunto
de forma brilhante. Apesar do foco ser o masculino (o que é bárbaro uma vez que
quando ressaltamos alguma transição focamos nos temas mais conhecidos do
feminino – mudanças no corpo, casamento, maternidade, etc.), fica evidente como
as pessoas estão carentes desses ritos – e como isto está impactando a vida das
pessoas.
“Esses ritos envolvem não
apenas a transição das dependências da infância para a auto-suficiência da
idade adulta, como também a transmissão de valores, como a qualidade e o
caráter da cidadania, e as atitudes e as crenças que ligam a pessoa aos seus
deuses, à sociedade e a si mesma.” (HOLLIS, 2008)
Os ritos têm um
caráter de iniciação e normalmente é passado ou ensinado por alguém
mais velho, capaz de dar o aval para a pessoa entrar neste ‘novo mundo’. Apesar
dos medos naturais de se entrar em uma nova fase sem ter um preparo para isto,
quando se tem uma pessoa mais experiente – e aqui podemos resgatar a imagem de
um velho(a) sábio – direcionando este processo, desperta uma confiança interna
de que poderá recorrer a ele quando precisar.
Esta pessoa que dá a iniciação
se torna uma testemunha deste momento. Assim como o rito era esperado, passar
por ele, encarar as dores desta transição vinha acompanhado de um certo orgulho
por ter chegado a sua hora; por ter mudado de fase.
Este sentido, agora perdido,
faz com que as pessoas não só estejam despreparadas para as mudanças de fase
como também estejam mais resistentes a qualquer tipo de dor, desafio,
desconforto. É como se quisessem ficar protegidos em um local que já não está
mais fazendo bem mas ao menos é conhecido – ou seja, os riscos falsamente são
minimizados.
Infelizmente as pessoas não
estão se entregando para a vida a partir do momento em que decidem evitar
qualquer tipo de mudança; assim, mesmo aquilo que acontece naturalmente
conforme vamos crescendo não é preenchido com nenhum significado:
”(…) a ideia da passagem é
essencial, pois todas as passagens implicam o fim de algo, algum tipo de morte,
e o início de algo, algum tipo de nascimento. Somente a morte é estática; o
princípio da vida é a mudança, e temos de passar por muitas mortes e
renascimentos para levarmos uma vida significativa. ” (HOLLIS, A passagem do
meio, 1995)
A
importância de se resgatar e atualizar os ritos
No processo de
autoconhecimento, na evolução da vida, é extremamente útil o ato de se
confrontar, olhar para a sua zona de desconforto e assim elaborar todos os
pontos – sejam eles negativos ou positivos – em busca de se conhecer em uma
totalidade. Talvez se resgatássemos alguns ritos, muitas das questões
conflituosas seriam trabalhadas no momento em que elas apareceriam, sendo
simbolizadas e trazendo algum significado para a vida de cada um. Todo
este processo de crescimento, confronto e conquista dão sentido para a vida e
preenchem a personalidade e segurança de cada um. É onde o ego vai sendo
trabalhado e amadurecido.
“Ao rito como continente
psíquico são atribuídas duas funções específicas: a) a função de passagem; b) a
função da transformação. Na primeira e na segunda acepção o rito entende-se
como a constituição de um limiar ou de um confim que liga e ao mesmo tempo
distingue o passado e o futuro, ou o sentido coletivo e o individual do mesmo
sujeito, isto é, ele estará em grau de transpor um limiar à medida que está em
grau de configurar a possibilidade de que elementos diferentes ou opostos
venham, de um lado, a coincidir, e do outro a distinguir-se verdadeiramente”
(PIERI, 2002)
Assim sinto que cada vez mais,
o resgate dos ritos se faz necessário. Não apenas como um recurso ou protocolo,
mas principalmente na vivência e valorização das mudanças e etapas de vida. Esta mudança de olhar contribuiria para
que os obstáculos fossem encarados como algo positivo e enriquecedor ao invés
de serem taxados como nocivos e assustadores.
Passar pelas provas da vida é
uma tarefa para o nosso herói interno; mas esta oportunidade está sendo
blindada pela falta de prontidão, medo de não dar conta, receio de vivenciar o
novo e desconhecido. Jung fala sobre o perigo de esquecer as tradições como uma
ferida à alma:
“A dissolução de uma tradição,
por mais necessária que seja em certas épocas, é sempre uma perda e um perigo;
um perigo para a alma porque a vida instintiva – como o que há de mais
conservador no homem – se exprime justamente pelos hábitos tradicionais. ”
(JUNG, 2012)
Afinal, como dizia Jung, a
vida começa sempre e de novo. São os ciclos que nos levam adiante. Saibamos
respeitá-los. Vivenciar cada etapa da vida, enfrentar o novo faz parte da vida
e do crescimento. Este é o sentido da vida.
Retirado do site Jung na Prática. Disponível em https://www.jungnapratica.com.br/ritos/
Referências
HOLLIS, J.
(1995). A passagem do meio. São Paulo: Paulus.
HOLLIS, J.
(2008). Sob a sombra de saturno: a ferida e a cura dos homens (3ª
ed.). São Paulo: Paulus.
JUNG, C.
(2012). A prática da psicoterapia (15 ed., Vol. 16/1).
Petrópolis: Vozes.
PIERI, P. F.
(2002). Dicionário Junguiano. (I. STORNIOLO, Trad.) São Paulo: Paulus.
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