Por Dra. Malena Segura Contrera - Membro Analista do IJEP
Dedicado a todos os animais silvestres que saltitam livres pelas ruas
das cidades mundo afora e a todos os animais domésticos que cuidam de nós em
nosso recolhimento.
A imagem de Pã é conhecida na sociedade ocidental como a face do Diabo.
Nas cartas de tarô ou no imaginário popular a figura do Diabo sempre se
aproxima da iconografia pela qual vimos Pã ser representado, a partir das
descrições que dele fazem as narrativas míticas.
Essa associação de Pã com o Diabo se constrói tardiamente no Cristianismo, sobretudo em função do ataque da igreja católica ao paganismo, que resistia para muito além do desejado no novo mundo cristão. Como sabemos, o termo pagão vem de “pagus”, que significa pedaço de terra arado, o que nos leva a compreender que, enfim, o pagão era o camponês, o homem que vivia na terra, da terra e para a terra. Pagãos eram as benzedeiras que faziam suas rezas com ervas, água, sal, os curandeiros que conheciam os segredos das ervas e beberagens, os agricultores que seguiam os segredos das lunações para plantar e colher, os criadores de animais que se orientavam pelos calendários lunares para acompanhamento do nascimento das novas crias... enfim, todos que organicamente se pautavam pela temporalidade e pelos ritmos naturais. Logo, a matéria concreta era o universo de onde emanava toda a vida. Estávamos no tempo do mundo encantado. E não foi fácil para o mundo cristão afastar os homens desse mundo, foram vários séculos de constantes ataques e, no entanto, só se obteve sucesso com o Protestantismo e a criação do Capitalismo, conforme apresentou Max Weber.
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https://www.vix.com/pt/mundo/584520/cachorrinha-vira-terapeuta-e-conforta-profissionais-de-saude-que-lutam-contra-coronavirus
Pã era exatamente um legítimo representante desse mundo, um deus do
grotesco, que significa “da gruta”, ou seja, um deus que habita o interior das
cavernas, das grutas, no útero da Grande Mãe Terra. Sua forma híbrida, metade
homem, metade cabra, simboliza justamente essa proximidade com o mundo animal,
com o mundo vivo e pulsante dos campos, dos prados, das plantações.
Sobre Pã, Junito Brandão afirma: “Pã, o velho filósofo, o sábio, um
‘simples pastor’, apegado à terra, aos animais e à natureza, possuindo também
poder divinatório...” (BRANDÃO: pg. 237).
De sábio e vidente, filósofo, como descrito no mito, associamos hoje Pã
ao Diabo e a uma terrível doença, o pânico. O pânico justamente poderia ser
compreendido como sintoma da dissociação entre o homem e o mundo que Pã
simboliza. Mas isso leva nossa reflexão por um outro caminho, que pode ser
retomado em outra ocasião.
Por agora, é sobre sua relação com a ideia de pandemia que queremos
pensar. Pã traz em seu nome o sentido do “tudo ao mesmo tempo aqui e agora”,
resgatando a ideia de todo, de “holos”, de “organum”, ou seja, daquilo que deve
ser considerado em seu aspecto global, aquilo que não se submete a divisões,
esfacelamentos, aparentes classificações.
Nada para mim remete mais a Pã do que essa impossibilidade de dividirmos
a vida em áreas de saber, em classes econômicas, em setores de produção, esse
fatiamento do mundo sempre realizado com o intuito de despotencializar a vida e
dominar as forças vitais.
E é esse caráter unificador de uma pandemia – todos somos vulneráveis,
ninguém pode se blindar, não importa quanto dinheiro ou poder tenha – que me
parece representar claramente Pã.
O longo processo civilizatório que trouxe muitos ganhos nos cobrou, no
entanto, o apagamento da nossa raiz comum, a nossa humanidade tão bem
representada pela nossa natureza biológica, pela nossa mortalidade, pela nossa
sujeição ao alimento e pela nossa fragilidade como indivíduo.
Tem sido interessante observar como muitas pessoas hoje parecem
surpresas com a constatação da codependência na qual a pandemia as colocou,
como se não fôssemos todos tão codependentes das redes de sociabilidade e dos
vínculos primordiais desde sempre, como espécie. Não falo aqui daquela
codependência patológica, clínica, falo dessa codependência própria de todos os
seres que habitam o mesmo bioma. Em nosso caso, esse bioma, a casa comum, é o
planeta Terra.
Enquanto Pã nos lembra de nossa natureza animal, mortal, frágil e
codependente, a Terra se regenera. Há dados abundantes na internet de como
rios, lagos, bosques, atmosfera, corais, enfim, quase todo o planeta se
purifica, restabelece sua vitalidade constantemente destruída por essa espécie
arrogante chamada humana.
Se Gaia tivesse que enviar alguém para conter a hybris humana, para
alertar que nós somos da Terra – e não que a Terra é nossa, como temos na visão
ocidental -, e que temos sido péssimos hóspedes, adoecendo gravemente a
hospedeira, não imagino um deus melhor do que Pã.
Nossa reação de terror frente a Pã é tão maior quanto mais distante
estamos da nossa natureza biológica, da nossa relação com a mãe Terra. Tê-lo
transformado em nosso Diabo diz muito sobre nossos valores e sobre os deuses
que temos adorado. Escolhemos os deuses do patriarcado: o dinheiro, o sucesso,
a acumulação, a grandiosidade, a velocidade, enfim, tudo que se construiu sobre
a destruição do equilíbrio natural planetário, tragédia para a qual temos sido
alertados há décadas por James Lovelock.
Essa pandemia traz uma lição em seu nome, a necessidade de mudança dos
valores humanos. Agora temos a chance de pararmos de negar o que sempre
deveríamos ter considerado: somos uma única espécie, num planeta que nos acolhe
gentilmente, uma espécie frágil, que só encontra sua força no estabelecimento
de uma vida em comum.
As crianças e os adolescentes têm sempre uma enorme necessidade de se
diferenciarem, de se destacarem, de provarem para os outros que são
“especiais”. Adultos sabem que, no fim e ao cabo, a grande bênção é ser apenas
um sujeito comum.
Está na hora de amadurecermos, de promovermos um salto de consciência e
aceitarmos nossa condição de apenas mais uma espécie. Claro que com o
diferencial da consciência, o que não é pouco; mas apenas mais uma espécie
nesse lindo planeta que agora passa melhor do que antes da pandemia.
No momento em que é preciso que milhões morram e todos se recolham para
que a Terra possa se regenerar, é porque realmente nossa arrogância enquanto
espécie passou dos limites do tolerável faz tempo. E Pã, que veio nos visitar,
talvez tenha vindo nos lembrar de nossos pés de cabra, da necessidade de
pisarmos nessa Terra com a delicadeza dos animais.
Dra. Malena Segura
Contrera - Membro Analista do IJEP
Texto retirado de https://www.ijep.com.br/artigos/show/pa-o-enviado-de-gaia
Referências:
BRANDÃO, J.
S. Mitologia Grega, vol. 2. Petrópolis: Vozes, 1986
CONTRERA, M.
S. Mídia e pânico - saturação da informação, violência e crise cultural
na mídia. S. Paulo: Annablume, 2002.
Pode ser acessado
integralmente no link:
HILLMAN, J. Cidade
e Alma. S. Paulo: Studio Nobel, 1993.
JUNG, C. G. Civilização
em transição. Petrópolis: Vozes, 1993.
LOVELOCK, J. Gaia
– alerta final. Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca, 2010.
MORIN, E. e WULF,
C. Planeta, a aventura desconhecida. S. Paulo: Unesp, 2003.
WEBER, M. A
ética protestante e o espírito do capitalismo. S. Paulo: Cia. das Letras,
2004.
ZOJA, L. História
da arrogância. São Paulo: Axis Mundi, 2000.
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